O reerguer da mulher encurvada
Nas primeiras vezes que fui visitar a minha filha recém-nascida à Neonatologia tive de ser levada numa cadeira de rodas. Durante vários dias, só conseguia andar devagarinho, com uma mão na barriga e outra apoiada na parede, por curtas distâncias de cada vez, curvada sobre mim mesma, impossibilitada de me erguer, por causa das dores e das limitações físicas causadas pela cesariana.
Nesses dias, lembrei-me da história da mulher encurvada, que nos é contada no Evangelho de S. Lucas:
"Num dia de sábado, ensinava Jesus numa sinagoga. Estava lá certa mulher doente por causa de um espírito, há 18 anos: andava curvada e não podia endireitar-se completamente. Ao vê-la, Jesus chamou-a e disse-lhe: «Mulher, estás livre da tua enfermidade.» E impôs-lhe as mãos. No mesmo instante, ela endireitou-se e começou a dar glória a Deus.
Mas o chefe da sinagoga, indignado por ver que Jesus fazia uma cura ao sábado, disse à multidão: «Seis dias há, durante os quais se deve trabalhar. Vinde, pois, nesses dias, para serdes curados e não em dia de sábado.»
Replicou-lhe o Senhor: «Hipócritas, não solta cada um de vós, ao sábado, o seu boi ou o seu jumento da manjedoura e o leva a beber? E esta mulher, que é filha de Abraão, presa por Satanás há 18 anos, não devia libertar-se desse laço, a um sábado?» Dizendo isto, todos os seus adversários ficaram envergonhados, e a multidão alegrava-se com todas as maravilhas que Ele realizava.". (Lc 13, 10-17)
Não sei se sabiam mas, no tempo de Jesus, as mulheres tinham de ficar na parte de trás das sinagogas, separadas dos homens por uma vedação ou gradeamento (tal como acontecia com os gentios, que também não podiam ter acesso às zonas restritas e mais sagradas dos judeus, no interior do Templo ou das sinagogas). Elas só podiam, caso assim quisessem, ouvir a leitura e o estudo das Sagradas Escrituras se permanecessem sentadas lá atrás, bem no fundo do grande salão.
Assim, neste dia de Sábado, lá atrás na sinagoga, encontrava-se uma mulher - que não só era mulher e tinha de estar lá atrás, como, ainda por cima, era encurvada, o que a tornava ainda menos visível. Esta mulher, diz-nos o Evangelho, estava doente por causa dum “espírito de enfermidade” ou dum “espírito de fraqueza” (dependendo das traduções), que a obrigava a viver encurvada desde há 18 anos. Uma vez, explicaram-me que a palavra grega usada neste texto significava que esta mulher vivia “dobrada sobre si mesma” e “impedida de erguer a cabeça”.
Apesar de tudo isto, Jesus vê-a. Para Ele não há barreiras nem separações. Na Sua presença, todas as grades, reais ou simbólicas, caem por terra.
O Evangelho não especifica se Jesus a chamou até junto de Si ou se foi ter com ela. Mas Jesus interpela-a directamente, coloca as Suas mãos sobre o dorso da mulher e declara-lhe: “Mulher, estás livres da tua enfermidade”, ou “Mulher, estás livre dos laços da tua fraqueza” noutras traduções. E ela imediatamente endireitou-se e começou a dar glória a Deus.
Esta mulher vivia encurvada sobre si mesma, ou seja, os outros olha-la-iam – tanto de forma literal como figurativa – de cima para baixo. O próprio olhar desta mulher estava preso no chão. O seu olhar estava limitado. Os seus horizontes eram estreitos, sujos, pedregosos - como o solo que constantemente fitava.
Jesus é a primeira pessoa, na vida naquela mulher, que não a olha de cima para baixo; antes, a eleva, até Si, permitindo-lhe olhar, olhos nos olhos, com o próprio Deus, contemplando-a e permitindo que ela O contemplasse também, alargando os horizontes do seu olhar e, assim, da sua vida.
Na sociedade do tempo de Jesus (tal como vemos retratado noutros episódios evangélicos), as pessoas acreditavam que as doenças mais graves e debilitantes - como a condição desta mulher - eram uma forma de castigo divino, por alguma culpa ou pecado grave cometido, ou por si ou por familiares próximos. Assim, quanta vergonha não sentiria esta mulher, de cada vez que necessitava de aparecer em público, para comprar comida ou rezar ao Deus de Israel na sinagoga, naquele estado físico, que dava tanto nas vistas ...
Esta mulher tinha um corpo imperfeito, doente, permanentemente dobrado e encurvado sobre si mesmo, que lhe roubaria toda a auto-estima e amor próprio. Talvez até a fizesse viver numa profunda tristeza e solidão. Mas foi com este mesmo corpo, imperfeito e deformado, que ela se permitiu ser olhada, chamada e tocada por Jesus. Sem sentir qualquer vergonha ou medo, talvez pela primeira vez na sua vida. Ao endireita-la, ao levantá-la, Jesus devolve-lhe toda a dignidade que anteriormente tinha perdido.
Jesus identifica-nos claramente que o “espírito de enfermidade” ou o “espírito de fraqueza”, que a impedia de se manter direita, provinha da acção de Satanás, o Adversário, o Inimigo da humanidade desde o Génesis. Assim, fica claro que a condição desta mulher era muitíssimo mais profunda do que só uma maleita física.
No final deste milagre, o chefe da sinagoga critica Jesus por o ter realizado em dia de sábado, dia em que não seria suposto realizar-se qualquer tipo de trabalho, segundo os costumes judaicos. É curioso reparar como todas as curas sabáticas de Jesus, descritas nos Evangelhos, têm algo em comum: nenhuma dessas curas foi “solicitada” a Jesus; em nenhuma delas veio alguém, ou algum intermediário, ter com Jesus, pedindo ou implorando a sua cura ou a cura de outrem. Aliás, se repararmos com atenção, todos os milagres de Jesus em dia de sábado partiram da Sua própria iniciativa, foram voluntariamente concedidos por Si, sem que o doente Lho tenha pedido – como é o caso do milagre desta mulher encurvada.
Assim se manifesta claramente a iniciativa de Deus em nos salvar, Ele que é o “Senhor do Sábado”. Desta forma, Cristo relembra-nos a intenção primordial, o propósito, do dia de sábado, o Shabat, o dia de descanso do Senhor: este seria o dia da semana dedicado e consagrado ao encontro, a nível pessoal, familiar e comunitário, com o Senhor; em que o povo deveria permitir-se descansar e usufruir da Obra da Criação; em que os judeus deveriam relembrar e comemorar a libertação da escravatura do Egipto e da vitória do grande Êxodo, e assim louvar a Deus por todos os Seus dons e bênçãos.
Jesus usa palavras duras e chama-lhes de hipócritas. Se os judeus podiam soltar os seus animais, no dia de sábado, para os levar a beber, quão mais adequado não seria que esta mulher bebesse da verdadeira Água Viva, no dia do Senhor, e assim readquirisse a sua dignidade perdida de filha de Deus? Aquela mulher foi reerguida através do seu encontro com Jesus e imediatamente se pôs a louvar o Deus que a tinha salvo - cumpriu-se na perfeição o propósito do dia do Shabat ....
Para ouvir esta ou outras catequeses, sobre os encontros de Jesus com algumas das mulheres dos Evangelhos,
basta clicarem no Podcast - Encontros com Jesus.