Vencendo os nossos medos
Hoje quero contar-vos uma história... Uma história que me é difícil de contar, pela intimidade das emoções que descrevo, mas que ainda assim vos conto, na esperança de ajudar alguém que esteja numa situação parecida.
No Verão entre os meus 17 e 18 anos, ou seja, entre a saída da escola secundária e a entrada na faculdade de medicina, eu decidi tirar a carta de condução. E porquê?
Ora, porque os meus avós paternos queriam oferecer-ma como prenda dos meus 18 anos e porque, principalmente, eu queria ser a primeira pessoa do nosso círculo de amigos a tirar a carta... Esta era a principal razão - eu queria, como sempre tinha acontecido até essa altura, ser a primeira.
Correu tudo muito bem e eu tirei a carta em 4 meses, passando tanto na prova de código como na de condução à primeira, sem problemas nenhuns...
Contudo, pouco tempo depois, ía eu um dia a conduzir com o meu pai ao lado, quando tive um (quase) acidente ... bastante estúpido e embaraçoso.
Eu parei numa passadeira, numa rua bastante inclinada, e depois ... simplesmente não consegui subir com o carro. Deixei o carro ir a baixo pelo menos 5 vezes. E de cada vez que tentava voltar a ligar o carro e arrancar, fazia um barulho alto e deixava-o cair para trás, mais e mais, cada vez mais para trás, quase batendo no carro que seguia atrás. Os outros carros já apitavam e gritavam. As pessoas que estavam no café ao lado vieram cá para fora, para ver e comentar. Eu tremia por todo o lado e chorava. E o meu pai gritava comigo, talvez pela 3ª vez em toda a minha vida, que eu estava quase a bater ...
Não me lembro de como consegui eventualmente subir a rua. Só me lembro de pisar a fundo o acelerador e do carro fazer novamente um barulho muitíssimo alto .... mas lá subi.
Nesse dia, jurei que nunca mais voltava a pegar no carro. Nunca, nunca mais!
Durante os 5 anos seguintes, ganhei um medo crescente de conduzir e de andar de carro. Fazia de tudo para o evitar. Tive pesadelos frequentes comigo a conduzir e a ter vários acidentes... travões a falharem, pessoas a morrerem ... Nunca mais consegui estar dentro dum carro e subir uma rua inclinada, mesmo não sendo eu a conduzir, sem começar a suar e a tremer, fechando os olhos com força e rezando para que o carro não caia para trás, por favor, que não caia para trás, por favor ....
Dizer que eu tinha medo de conduzir era um verdadeiro eufemismo! Eu tinha um autêntico pavor!!
A maior parte das mulheres na minha família têm carta de condução mas não conduzem. A minha mãe conduz e é uma excepção, apesar de ter estado alguns anos sem conduzir antes de eu ter nascido. A minha situação era portanto perfeitamente "normal" e aceitável no seio da minha família.... ainda assim, eu sentia uma enorme vergonha de não conseguir conduzir. Principalmente, quando ao longo destes anos fui vendo os meus colegas a tirarem também a carta e a conduzir até à faculdade ... se alguém me perguntasse se eu tinha carta, eu mentia e dizia que não, só para não ter que dar satisfações ... e a vergonha da situação aumentava a cada dia.
Acho que já o disse várias vezes aqui no blog, mas eu entrei para Medicina para um dia vir a ser médica de família. Esse sempre foi o meu maior sonho, ser médica de família, e até hoje, estando prestes a terminar a faculdade, nunca encontrei outra especialidade que me fascinasse e interessasse mais ...
Ora, penso que conseguirão imaginar como eu me senti quando, um dia, descobri que para se ser médica de família é necessário ter carta de condução e conduzir ... Faz parte das funções duma médica de família visitar os doentes a casa, quando estes não se podem deslocar ao centro de saúde (aquilo a que chamamos fazer domicílios).
Além disso, estava a tornar-se cada vez mais difícil encontrar transportes públicos para chegar aos diversos hospitais de Lisboa onde tinha aulas ....
E agora, o que é que eu faço?
Deus, como querido e atencioso Pai, enviou-me dois autênticos anjos para se tornarem meus amigos na dura e difícil vida na faculdade de medicina. Esses dois anjos, a quem eu estarei eternamente agradecida, transformaram aos poucos a minha vida, em diversos aspectos. Um deles, foi em relação ao meu medo de conduzir.
Durante o último ano, estes dois amigos (curiosamente, um casal de namorados católico) foram falando comigo acerca deste medo e incentivaram-me progressivamente a voltar a pegar no carro e conduzir. Todos os dias me diziam uma nova razão para conduzir: visitar os meus (futuros) doentes a casa; ir à igreja e à missa quando me apetecesse, não ter que estar sempre a pedir favores para me levarem aqui ou além, transportar crianças... enfim, servir o próximo.
Assim, durante o último ano rezei quase diariamente para que Deus me ajudasse a voltar a conseguir conduzir e a superar este medo que me paralisava e me impedia de ajudar aqueles que precisavam de mim ...
Quando soube que iria (como realmente vou) passar o próximo ano no Hospital de S.Bernardo em Setúbal, achei que tinha chegado a hora. Estava na altura de vencer os meus (vários) medos, e voltar a conduzir seria o primeiro. Estava na altura de crescer.
Assim, este verão decidi tirar algumas aulas numa escola de condução... e então consegui! Voltei a conduzir!!
Há dias em que me esqueço como era a minha vida antes de me (re)converter ao Catolicismo.... oh tão, tão diferente da vida que hoje tenho. Da vida que o Senhor me deu.
Só quando comecei a tentar vencer este medo de conduzir e procurei o porquê das razões que me tinham levado a desistir é que me dei conta da enorme diferença que existia também neste aspecto da minha vida. Antes, eu queria conduzir para ser a primeira, para ser importante, para ser admirada ... por orgulho!
Agora, imensamente ajudada por Deus, quero conduzir para poder servir o próximo. Oh, só o Senhor para provocar uma mudança tão grande neste meu coração, orgulhoso e egoísta ...
Não foi nada fácil voltar a conduzir, claro ... foi uma autêntica batalha ... mas Deus escolheu um instrutor com a voz mais baixa e calma que eu alguma vez ouvi, e com a maior paciência do mundo, que me ensinou a ter confiança em mim mesma. Deus ofereceu-me inúmeras oportunidades, durante o verão, para conduzir o nosso carro, inicialmente com a mãe e depois com o pai.
Neste momento, já conduzi várias horas sozinha, de dia e de noite, sem trânsito e com trânsito. Já atravessei a Ponte 25 de Abril e passei por Lisboa. No último fim-de-semana, o Senhor deu-me a oportunidade de ir a conduzir até ao retiro das Famílias de Caná, a 250km daqui. E daqui por uns dias, passarei a ir de carro até ao Hospital de Setúbal, sozinha, todos os dias.
Ainda faço asneiras, claro. Continuo a ter algum receio de subidas inclinadas. Há dias em que ainda deixo o carro ir a baixo. Acontece, pronto. Mas, com calma, consigo.
Não há problema se falhar à primeira. Tenho sempre uma nova oportunidade .... a misericórdia infinita de Deus assim nos concede.
Conduzir, parece-me, assemelha-se muito ao ensinamento acerca da ginástica da nossa querida Teresa:
É preciso ter força para agarrar e coragem para largar ...
Nós Jesus, vamos de carro até ali.
Nós Jesus, vamos conduzir em segurança.
Nós Jesus, Tu e eu....